24 de out. de 2010

Um peixe que come madeira?

Um cascudo gigante da Amazônia que come madeira de toras caídas na água – e, quando fica desesperado de fome, as fezes de outros cascudos. Pra facilitar a tarefa, tem dentes em forma de colher. Você quer saber mais, certo?

É um dia normal de trabalho para o cientista brasileiro Paulo Petry, especialista em água doce da TNC na América Latina. Ele participa de uma expedição científica ao Arco de Fitzcarraldo, um dos lugares mais remotos da Amazônia peruana, e acaba de pescar o primeiro espécime inteiro da espécie.

Conversamos com Paulo para saber mais sobre o peixe, a região e entender por que descobrir uma nova espécie não é grande coisa... pra alguém que já fez isso mais de dez vezes.

Vamos falar primeiro sobre o peixe — ele não é lá muito bonito, não é?
PAULO PETRY: Quem ama o feio, bonito lhe parece. Tenho amigos cientistas que estudam o blobfish e o acham lindo!

Qual o tamanho destes espécimes e onde você os achou?
PETRY: O maior tem aproximadamente 65 cm de comprimento e os outros dois têm a metade deste tamanho. Pescamos os três na confluência dos rios Purus e Curanja, na Amazônia peruana. O rio Curanja é um tributário do rio Purus.

Ouvi dizer que esse peixe é 'blindado'.
PETRY: Há 35 famílias diferentes de cascudos em nosso planeta. O cascudo blindado é encontrado apenas na América do Sul. É o grupo mais diverso de cascudos da América do Sul, com cerca de 800 espécies. São bastante evoluídos - é um grupo bastante especializado entre os bagres.

Imagino que não seja muito fácil encontrar um peixe que come madeira...
PETRY:Há um grupo pequeno de bagres que faz isso. Alguns fazem tocas em toras caídas na água, mas os que se especializaram em comer madeira são de um grupo muito pequeno. A habilidade de digerir madeira vem de um protozoário que vive no seu intestino. Ele pode converter celulose num tipo de açúcar que pode ser absorvido.

Isso é uma das questões mais importantes a considerar no comércio destes peixes para o uso em aquários — as pessoas que fazem isso deixam que os peixes passem fome durante muito tempo durante o processo de transporte. Os protozoários no estômago morrem e os peixes não podem digerir madeira. Colocando peixes saudáveis do mesmo grupo no aquário, os peixes que estão passando fome comem as fezes dos saudáveis para se reinocularem com protozoários. Então podem voltar a comer madeira e sobrevivem.

Os nativos da região já conheciam este peixe ou foi uma descoberta verdadeira para a humanidade e não apenas para a ciência?
PETRY: Os nativos comem este peixe. No local onde o encontramos existem principalmente comunidades indígenas do povo Nahuan. Eles têm cinco etnias diferentes; trabalhamos com a etnia Sharanahua (que significa “povo bom”). Eles chamam o peixe de Ishgunmahuan, que em seu idioma significa “bagre grande blindado”. Em espanhol, eles o chamam de “carachama gigante”.

Existem 10 espécies deste gênero, chamado Panaque, e todas têm algo em comum: alimentam-se de madeira e têm dentes em forma de colher que os permite raspar madeira. Os limites de distribuição destas espécies são as bacias dos rios Magdalena, Orinoco e Amazonas. Duas delas parecem ter distribuição mais ampla, mas outras são endêmicas das bacias do Orinoco e do Amazonas.

Outra curiosidade é que três espécimes já haviam sido coletados no outro lado da Amazônia. Os locais haviam atirado neles e os dissecado, deixando apenas o "casco". Os espécimes que capturamos são os primeiros espécimes “frescos” — então podemos aproveitar o peixe inteiro para tirar amostras de tecido.

Parece que é bem difícil encontrar e pescar esta espécie. É preciso pescá-la com redes de emalhar ou de atirar. Como comem madeira, não é possível apanhá-los com linha de pesca.

Como você sabia que os indivíduos que pescou foram dessa espécie?
PETRY: Tínhamos visto três desses espécimes em Lima, que se pareciam. Pelo formato da cabeça, dá pra perceber que existem várias características que ajudam a distinguir a espécie, se é uma já conhecida ou uma novinha. Neste caso, sabíamos que era nova. Quando voltamos para Lima, nós o comparamos com os outros espécimes.

Veja só, uma informação interessante: há mais de 4700 espécies de peixe de água doce na América do Sul. Em média, mais de 100 espécies estão sendo descritas por ano. Apenas neste ano, 69 novas espécies foram descritas. Estes números demonstram, de forma clara, que estamos muito longe de saber o número real de espécies de peixes de água doce na região.

Você faz parte de um projeto da Fundação Nacional para Ciência dos Estados Unidos que está levantando e documentando a fauna da região do Alto Purus, onde este peixe foi descoberto. Por que a região do Alto Purus é tão pouco conhecida?
PETRY: Provavelmente por ser a região mais remota da planície amazônica. O Alto Purus é uma região ecologicamente significativa por ser um divisor de drenagem entre quatro bacias hidrográficas importantes. O continente experimentou uma longa evolução de paisagem devido ao choque entre as placas que formaram a Cordilheira dos Andes. Havia uma grande bacia que se dividu em três. Isso fez com que a região se tornasse estratégica para um número muito grande de espécies.

Depois da bacia se dividir, as coisas começaram a se diversificar — a divisão gerou muitos tipos de habitat, de planícies a córregos de altitude, e as espécies se adaptaram a estes nichos diversificados. Como a glaciação na América do Sul não foi extensiva, houve poucos eventos de extinção no continente ao longo dos anos.

O governo do Peru criou o Parque Nacional do Alto Purus, mas, como se sabe muito pouco sobre o parque, sempre houve dúvida sobre sua importância biológica. Estamos tentando mostrar que o parque é representativo de uma área muito importante para a diversidade de peixes e outros animais aquáticos. E estamos descobrindo que o número de espécies de grupos de invertebrados é muito alto e que sua diversidade é muito maior do que se esperava.

Há algumas ameaças iminentes sobre a região, certo?
PETRY: Sim. Há várias propostas de grandes projetos de infraestrutura como a construção de estradas — que vem acompanhada pela extração de madeira, criação de gado e queimadas. E, como a região inteira é formada por solos sedimentários finos, qualquer mudança no uso da terra e alteração da cobertura florestal leva a um processo acentuado de erosão. A região já é naturalmente suscetível à erosão; se mais coisa mudar, a situação vai piorar.

Além disso, as comunidades indígenas da região vêm fazendo forte oposição à construção de estradas na região — elas sabem que essas iniciativas trazem problemas novos, doenças e degradação ambiental. Atualmente a região é bastante isolada. Só há dois voos mensais para a região, feitos pela Força Aérea Peruana para o fornecimento de suprimentos. A outra forma de chegar lá é por rio, que é muito longe. Fretamos um avião e sobrevoamos a floresta.

Eu imagino que esta espécie não é a única que você espera descobrir neste projeto.
PETRY: Encontramos muitas coisas pequenas, como peixinhos e bagres, que precisam ser olhadas com bastante atenção com o microscópio para compará-las com espécies já conhecidas; acredito que vai haver algumas espécies novas no material que coletamos até agora. Até o momento temos três com certeza – dois bagres e um pequeno tetra, mas acho que outras serão encontradas em breve.

Quantas espécies novas você descobriu durante sua carreira?
PETRY: No momento, tenho 11 apenas esperando para serem descritas — o problema é que não tenho tempo para terminar este trabalho agora. Alguns artigos estão quase completos. Como a TNC não documenta mais a biodiversidade de forma direta, eu faço isso no meu tempo livre nos finais de semana.

Então você não mantém uma conta do número de espécies que descobre?
PETRY: Quando descubro alguma coisa, mando o material para especialistas que trabalhem com aquele grupo de espécies e eles as descrevem. No decorrer dos anos, eu ia mandando e eles cuidam do resto.

Texto traduzido do original de Robert Lalasz/TNC


Fonte:http://www.nature.org/

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